Palavras da Preta velha
Essa Preta, quer lhe falar hoje um pouco sobre como eram as coisas na humanidade, um pouco antes de eu morrer. Quero que vocês relacionem o que eu vou contar daquela época com o seu estado de vida atual.
Essa Preta chega aqui na barriga da minha mãe, vinda do Congo, num navio negreiro. Ela e muitos outros. Quando nêgo chegava aqui, naquele navio infectado, muitos mortos ficavam pelo caminho. O negro não tinha lugar pra descansar, vinham todos de pé, pra caber mais pessoas. Eles não nos chamavam de pessoa, porque nêgo era mercadoria. Havia um movimento de buscar mercadoria para que pudesse ter economia. Eis que a mercadoria éramos nós. Que seríamos vendidos, mas não sem antes sofrer muita humilhação e maus-tratos. Logo que chegou o primeiro navio, as pessoas sensíveis - porque acreditem, existem pessoas sensíveis em todos os tempos, e naquele tempo também tinha – ficavam assustadas ao nos ver, mas mesmo assim, não entendiam porque judiavam tanto do nêgo. Uns, achavam que a economia era mais importante, e que o país precisava crescer, por isso, deviam tratar bem a “mercadoria”. Outros, sentiam piedade mesmo. Mas, mesmo algumas pessoas se mostrando sensíveis à dor, logo criavam explicações para justificar e negar o sofrimento do meu povo. “Nêgo não é gente”, diziam uns. “Não tem sentimentos”. “O couro deles é mais duro, a pele deles não sente tanta dor”, diziam outros. “Não, é que o cérebro deles é diferente do branco, tem menos cognição”. E os nêgo ficaram sofrendo, pois pra tudo tinha uma explicação que justificava aquilo que aconteceu com o meu povo. Então, eis que os nêgo que não aceitavam isso lutaram muito. Quem lutou pelo meu povo, foi meu povo mesmo. E quantos ainda continuam lutando duro até hoje pra mostrar que tem valor, que é gente, que somos uma etnia, que viemos de reis e rainhas da África? Então, meus filhos, por que a escravidão durou tanto tempo? Porque vale mais pra humanidade, que não quer olhar para o sofrimento do outro, ter a sua falsa paz, e ir pra casa dormir, do que a verdade, do que sofrer por amor, encarando a verdade.
Pense sobre isso, trazendo isso para o momento atual de suas vidas. Naquele tempo, as pessoas negavam a existência do meu sofrimento e do meu povo. Negavam as mortes. Porque quando morriam, era só mais um nêgo, mais uma mercadoria. Buscavam-se as pencas. Vinha mais um navio negreiro, e há de se ter mão de obra, e chegando aqui, há de se “fabricar” mais ainda. Porque o importante era a economia. Vida não era importante. Muitos preferiam a paz da mentira, de negar os sofrimentos, do que o amor de encarar a verdade. Pensem nisso. Todo negacionista, no seu mecanismo de se defender da dor de ver a verdade, prefere a paz hipócrita. A paz mentirosa. A falsa paz. Vamos pensar sobre isso. Para essa Preta, vale muito mais a dor do amor pela verdade, pra mudar o mundo e ajudar o outro, transformar o mundo num lugar melhor, do que a falsa paz da hipocrisia, da mentira e do negacionismo.
Vô Maria Joana do Congo - Raios de Luz
15/05/2020
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